segunda-feira, maio 01, 2006

A Rambóia Jocosa Recomenda:


LOU REED – The Raven - Special Ed.



Passou um mês desde que arranjei o álbum. Trata-se de uma ode épica de Lou Reed ao grande poema do poeta americano Edgar Allan Poe - "The Raven". Críticos, tanto na imprensa como na net, têm-se atirado a ele como corvos famintos (passo o jogo de palavras), dilacerando o álbum psicótico e esquizofrénico de Reed com a subtileza de uma matilha de hienas. Palavras como “embaraçoso”, “pretensioso”, “horrível”, “insatisfatório” e “hilariante” saltaram-me à vista como chacais, redigidas por escribas cínicos no seu melhor. Alguns, atrevo-me a dizer, tomados por uma raiva cega e alguns apenas para manterem um certo nível indie. Durante semanas, após me terem falado dele, andei curiosa sobre o que ia achar do álbum, sendo eu uma profunda admiradora tanto da obra de Reed como da criação literária de um dos mais importantes founding fathers daquilo a que hoje chamamos “Literatura Norte-Americana”, após de ouvir o álbum durante uma semana a fio, sinto-me psicologicamente exausta e emocionalmente drenada. Batendo mais que qualquer cena que tenha mandado e apesar do nevoeiro mental que se espalha no meu cérbero, há um pensamento que brilha fulgurante como uma labareda, com uma clareza que que me queima o espírito: Eu realmente adoro este álbum.

Antes de continuar, note-se que esta review do The Raven é a do digipack da edição especial que tem 2 CDS. Esqueçam a versão com um só CD de 21 faixas; é inútil, é lixo, e vai contra tudo que Reed pretendia criar com este projecto; foi ideia da editora, pensando que o público-alvo não ia querer um álbum duplo de duas horas com 46 faixas. Bem, em parte estão certos. Muito boa gentinha não vai gostar deste álbum: é arrogante, atrevido e inovador.

Reed numa analogia com o basebol disse:
"[The Raven's] my fastball. It's my 95 mile an hour pitch. And it's aimed straight at your chin. You can choose to bail, and hit the deck. Or, you can dig in, and deal with it.”

De volta aos seus dias como força criativa nos The Velvet Underground, Reed sempre andou a par do mundo da literatura. Estudou com o poeta Delmore Schwartz, e idolatrou escritores de contracultura como Hulbert Selby, Jr. e William S. Burroughs. Canções como a negramente cómica "The Gift", a experiência Burroughsiana em "The Murder Mystery", a ars macabre de rock-meets-radio em "Lady Godiva's Operation" e "Venus in Furs" (adaptada da badalada obra de Leopold Masoch) simplesmente mostraram que Reed é muito mais que um mero rock 'n' roller. Nos dias de hoje, Reed já publicou as suas letras num livro e até recentemente, promoveu este álbum em livrarias. Dificilmente será uma surpresa o facto de Reed ter decidido dar um novo brilho (não que ele precisasse) ao pai americano de toda a literatura gótica e asustadora, Edgar Allan Poe. Originalmente uma peça de teatro criada e elaborada em colaboração com Robert Wilson (que já trabalhara com Tom Waits (o homem que toca «comboio») num projecto que sustentou The Black Rider, peça e álbum), Reed levou a premissa ainda mais longe neste álbum; até agora, de facto, o resultado final é uma confusão, uma desalmada confusão, uma que nos leva a crer que Reed andava também ele a meter-se no famoso “opium” sobre o qual tantas vezes Poe escreveu. Mesmo assim, como uma áurea colagem de Wallace Berman, embora possa parecer um monte de lixo, talvez numa primeira abordagem, se escavarmos por entre o lixo começamos a encontrar flores raras e se tivermos tempo, reparamos que é tudo menos lixo.

The Raven, ao que parece, é mais spoken word que rock 'n' roll, e os fans de Reed de longa data podem ficar desapontados ao saber que Reed só canta em 13 das 46 faixas que compõe o álbum. Vários actores lêem interpretações da poesia de Poe e igualmente representam as suas histórias tanto quanto isso é passível de ser feito usando a voz. Reed, aos 60 anos consegue rockar como poucos músicos da sua idade (e até mais novos) conseguem e com uma ferocidade de quem não baixa os braços e se recusa a desistir.

Começa com a canção "Edgar Allan Poe", que, apesar de ser uma excelente performance de Reed e da sua banda, soa um bocado àquelas musicas escritas em cinco minutos, nas quais Paul McCartney se especializou: "He'll tell you tales of horror / Then he'll play with your mind / If you haven't heard of him / You must be deaf or blind." Há que admitir que isto é um pouco pobre. "Guilty" é cool jam com o grande Ornette Coleman no sax, enquanto a instrumental "A Thousand Departed Friends" tem um riff ameaçador. "Call on Me", o dueto com a wifie Laurie Anderson, é uma boa balada sentida, com a velha voz de Reed tremendo de emoção, enquanto a energética "Change" tem um toque filosófico "The only thing constantly changing is change / And change is always for the worse / The worm on the hook always eaten by a fish / The fish by bird man or worse".
A voz de Reed assume um coachar rachado e Dylanesco em dois temas inspirados no conto de Poe "The Tell-Tale Heart": na alta e paranóica "Blind Rage", bem como também na "Burning Embers". Por outro lado, na "I Wanna Know (The Pit and the Pendulum)", os gemidos guturais de Reed, aquando acompanhados pelas vozes desalmadas dos The Blind Boys of Alabama e "Hop Frog", com David Bowie como convidado especial (sim, a primeira coloboração Reed-Bowie em 30 anos), realmente não dizem muito, e tornam-se rapidamente cansativas. As melhores canções de Reed só aparecem mais tarde no albúm: a etérea e bela "Vanishing Act" onde Reed canta equilibradamente "How nice it is to disappear / Float into a mist / With a young lady on your arm / Looking for a kiss", antes do climax com uma coda englobando maravilhosos arranjos de cordas. "Who Am I" (Triptena's Song)", baseada numa personagem da história "Hop Frog Or the Chained Ourang-Outans", é Reed no seu melhor, com uma profundidade bastante pessoal nas letras, muito mais que simplesmente emprestar voz a uma personagem ele torna-se quase uma personna..."Sometimes I wonder who am I / The world seeming to pass me by / A younger man now getting old / I have to wonder what the rest of life will hold."
Embora o álbum seja de Lou Reed, a verdadeira estrela do The Raven é o produtor Hal Willner. Inquestionavelmente o melhor produtor de spoken word da actualidade, Willner tem sido responsável por algumas das mehores porduções da actualidade; os mais conhecidos são as suas coloborações com três grandes pilares da Beat Generation: Allen Ginsberg (o estupendo "Holy Soul Jelly Roll"), William Burroughs ("Dead City Radio"), e Gregory Corso ("Die On Me"). De facto, The Raven não é o primeiro projecto Poe-related de Willner, ele já produzira "Closed on Account of Rabies", um álbum de leituras de Poe. O que Willner faz neste álbum é criar uma experiência para o ouvinte que seja verdadeiramente desconcertante e às vezes assustadora usando para isso música minimal e efeitos sonoros arrepiantes, enquanto adoça os ouvidos com uma experiência retro de estar a ouvir uma rádio com uma frequência do além. Sabe melhor que ninguém como captar a atenção do ouvinte para a literatura fazendo com que esta seja uma experiência mais visceral que um simples livro gravado.

As declamações de poesia são fenomenais, feitas por actores como Willem Dafoe, Steve Buscemi, Fisher Stevens, Amanda Plummer, e Elizabeth Ashley. Nenhum destes actores representa papéis específicos neste álbum, muitas vezes representando o narrador em cada uma das leituras, e às vezes partilhando deixas que foram escritas para a mesma personagem, como acontece por exemplo em "The City in the Sea / The Shadow". Momentos altos incluem "The Fall of the House of Usher" (com Stevens e Dafoe), o intensamente assustador "The Tell-Tale Heart" (com Buscemi e Dafoe), a arrepiante leitura de Plummer de "Annabel Lee / The Bells", e como não podia deixar de ser, a impetuosa leitura de "The Raven" , a peça central do álbum, por Dafoe.

O que, inevitavelmente, me leva a comentar na adaptação de Reed da escrita de Poe. Enquanto damos permissão ao génio criativo no que diz respeito à adaptação e recriação dos contos, já não se pode dizer o mesmo da chacina desgovernada que Reed fez à poesia de Poe. Numa demonstração de arrojo artístico com já não se via há anos, Reed faz um tunning muito pessoal nos poemas para os fazer ficar mais contemporâneos. Claro que os resultados são extremamente óbvios, sobretudo em "The Raven", onde Reed corta-e-cose o original, apimentando-o com versos como, "Muttering I got up weakly / Always had trouble sleeping," "Respite through the haze of cocaine's glory," e "Sweaty, arrogant, dickless liar." É intrigante como um artista como Reed pode fazer um tributo a um grande escritor por puro amor à arte do mesmo, e ao mesmo tempo, dar mostras de tão pouco respeito por essa mesma arte. Mesmo assim, tenho que dizer que não é por aí que o gato vai às filhós... Todavia, estou certa que o bom velho Edgar não teria sentido necessidade de escrever um verso como "I'll fuck him up the ass and piss in his face."

The Raven atinge um climax espectacular nas últimas sete faixas, que se centram na história de "Hop Frog Or the Chained Ourang-Outans", assim que Stevens, Plummer e Dafoe dão vida à história de um bobo da corte e á sua amante que exercem uma terrível vingança num rei maligno e nos seus ministros. Reed acrescenta mais uns pozinhos à história de "Tripitena's Speech", mas desta vez resulta na perfeição, quanto à Tripitena de Plummer (alteração do "Trippetta" na história original) sussura fantasgoricamente deixas que podem ser aplicadas aos dias de hoje: "He who underestimates in time is bound to find the truth sublime / And hollow lie upon the grates of systematic disorder/Businessmen/You're not worth shitting on." Depois da maravilhosa "Who Am I?", somos levados de novo para a história, e assim que o rei e os seus são queimados vivos, Plummer rosna, "Burn, monkeys, burn!" Depois, segue-se "Fire Music", o momento zen deste álbum, onde Reed recria os sons caóticos do seu infame álbum Metal Machine Music. Seja lá como for, desta vez, todo o barulho está concentrado em dois minutos e meio de raiva sonora (com a agravante que foi gravada no estúdio de Reed três dias após o 11 de Setembro a mera distância do Ground Zero), e ao contrário do Metal Machine Music, resulta!

Tal como disse C.S. Lewis num ensaio sobre a obra-prima de Shakespeare, Hamlet, também este álbum é uma «artistic faillure» e tal como disse T.S. Eliot num outro ensaio onde comenta o de C.S. Lewis, se esta obra é uma «artistic faillure» então venham mais destas «artistic faillures». No fim de contas, o que torna esta «artistic failure» numa obra-prima é a entrega que Reed faz ao seu trabalho. Poucos são os artistas contemporâneos que se atrevem a tentar algo tão ousado e diferente, e tal como Dylan, ele ainda não cessou de buscar inspiração. "Who am I?" Reed escreve nas notas de rodapé, "Why am I drawn to do what I should not . . . the impulse of destructive desire - the desire for self-mortification." Este sentimento, este «to be or not to be» do que está errado ou certo, intrínseco e que está em todos nós é o tema central de The Raven. Críticos pouco criteriosos poderiam argumentar que Reed obviamente não sabia distinguir o certo do errado quando compôs este álbum, mas cá entre nós, querido leitor, embora ele não tenha sido feito para ninguém em particular, na minha humilde opinião é um sucesso. Um audacioso, incoerente, intrigante successo. Qualquer um que ame musica inovadora, apaixonada e alternativa deve procurar ouvir este álbum. Quanto a mim, vou dormir…
Com a luz acesa.
Demand Panic! At The Disco with Eventful! Discover and Create Events at Eventful Learn More about Eventful Demand

"It's an insane world and I'm proud to be a part of it. - Bill Hicks"